Mesmo sendo uma mulher que sempre correspondeu mais ou menos ao padrão de beleza vigente, sempre gerenciei uma alta dose de pressão estética. Essa é uma questão evidente na minha vida - é assunto constante nos meus grupos de amigas -, mas essa reflexão se intensificou nos últimos tempos por conta de uma capa da revista Capricho que circulou nas redes sociais alguns meses atrás. Publicada em julho de 2002, ano em que completei 18 anos, traz a imagem da atriz Priscila Fantin e uma declaração dela como manchete - “sou feliz o meu corpo" - e logo abaixo um subtítulo que diz “longe ser magrinha, Priscila Fantin, a Maria de Esperança, é contra a ditadura do padrão de beleza”. Vou publicar a imagem dessa edição da revista aqui para que você possa tirar suas próprias conclusões, mas também vou apontar a obviedade do absurdo: a atriz na foto é uma mulher magra, branca, jovem, totalmente dentro do padrão de beleza ocidental.
Vou contextualizar um pouco a mentalidade de 20 anos atrás porque fui adolescente nesse período e ele me marcou demais. Minha relação com o meu corpo e minha imagem ainda refletem muito daquele tempo. A tendência no que dizia respeito ao padrão do corpo feminino naquela época era chamada de heroin chic. É isso mesmo que você leu: a referência de beleza eram os corpos de pessoas viciadas em heroína. Eu vivi a minha adolescência em um período em que isso não era apenas normalizado como também encorajado. Algumas pessoas dizem que essa moda está voltando, que a Kim Kardashian, por exemplo, tem feito um esforço sobre-humano para ficar com uma aparência esquelética. Isso é péssimo, porém, hoje, temos uma representatividade muito maior de corpos na mídia do que 20 anos atrás.
A personificação dessa tendência eram as it girls. Britney Spears, Paris Hilton, Christina Aguilera, Nicole Richie, Lindsay Lohan – todas muito magras, muito loiras, muito ricas e muito famosas. Elas eram o modelo de vestir, de falar, de consumir e de pensar de milhares de meninas ao redor do mundo. Um modelo totalmente inalcançável para nós, reles mortais, meninas adolescentes que não nasceram herdeiras, que não foram atrizes mirins da Disney e que não eram nepobabys, para usar um termo mais atual. Alguns anos atrás, a Christina Aguilera virou notícia por estar com um corpo diferente no pós-parto (este parêntesis é só para dizer que isso é o normal da vida, pessoas que voltam para o corpo exato de antes da gestação são uma minoria e, normalmente, não conseguem isso de forma natural. Não caia jamais nessa cilada). Ela disse simplesmente que aquele era o corpo dela naquele momento, que ela agora aceitava isso, mas que no começo da carreira a indústria da música e do entretenimento fez da vida dela um inferno para que ela pudesse ter um shape antinatural para a sua estrutura. A cantora relatou que tomava remédio e fazia todo tipo de dieta para ter uma figura muito mais esguia do que teria normalmente. Talvez, para algumas daquelas it girls aquele era um corpo natural (a Paris Hilton se mantém macérrima até hoje), mas para a maioria era fruto de um esforço descomunal, enlouquecedor. Dá colocar parte de todo o pesadelo que a Britney ou a Lindsay viveram, por exemplo, na conta de toda essa pressão.
As minhas questões com o meu corpo antecedem esse período. Não sei exatamente porque eu passei a implicar com a minha barriga (isso persistiu ao longo de toda a minha vida e piorou no pós-parto do meu segundo filho). Lembro de, com 8 ou 9 anos, começar a usar maiô e cobrir a barriga o tempo inteiro. Eu fazia jazz e precisei usar um figurino com a barriga de fora em uma das coreografias que apresentamos e foi uma experiência totalmente agoniante, não via a hora de me cobrir. Aos 13 anos, descobri o laxante para os dias em que achava que comia demais. Tomava de forma totalmente irresponsável, sem a menor noção do mal que aquilo poderia causar. A chegada da TV a cabo na minha casa e a presença maciça da MTV nos meus dias agravaram um pouco a situação. Mais tarde, lembro de ver o corpo e a barriga da Britney no clipe de I’m a slave 4 U e pensar que eu precisava ficar igual. Passei a comer muito pouco, fazer grandes períodos de jejum e mascar muito chiclete. Tinha dificuldade de dormir à noite porque estava com fome, voltava sozinha a pé da escola - levava uma hora para percorrer quilômetros até a minha casa. No caminho, havia uma farmácia onde me pesava todos os dias. Minha meta era pesar sempre menos de 50 quilos, preferencialmente, 48. Normalmente, eu pesaria 53 ou 54 quilos, o que era totalmente adequado e saudável para os 1,64m que eu já tinha naquela época. Ou seja, não tinha nada a ver com saúde, era apenas uma tentativa perigosa de uma adolescente que queria pertencer. Conversando com uma das minhas melhores amigas de infância, por conta dessa capa da Capricho, descobri que ela se culpava por não conseguir jejuar como eu. Ela fazia, às vezes, duas aulas de spinning no dia e malhava todos os dias, em busca do mesmo corpo macérrimo que eu. Só que, ao contrário de mim, ela sempre foi o que chamamos hoje, sabiamente, de grande gostosa – tinha abundância de peito, bunda, coxa – o que na época a deixava ainda mais distante do ideal inalcançável que perseguíamos e muito mais oprimida. Ficamos as duas horrorizadas com essa constatação. Se hoje compartilhamos quase tudo, se não existem assuntos tabu entre nós, naquele tempo a gente simplesmente não falava sobre isso. Aliás, sobre quase nada que fosse realmente relevante. Essa conversa chegou com 25 anos de atraso, para o prejuízo de nós duas.
Por volta dos 22 anos, minha tireoide começou a dar ruim. Ganhei muito peso, fiquei deprimida e demorei tempo demais para descobrir o que acontecia comigo, graças aos médicos péssimos por quem passei nesse período e também à minha própria desconexão e falta de informação em relação ao meu corpo. Só aos 25 tive um diagnóstico e foi horrível. Estava vivendo em uma nova cidade há pouco tempo e fui em um endocrinologista do convênio. Relatei para ele meu ganho de peso incomum, um inchaço intenso, falta de energia, enjoo, entre outras queixas. Ele me disse que o que engordava desse jeito era comer demais, que se eu parasse, não ganharia peso. Eu, que vinha fazendo dieta de restrição e exercícios com afinco, sem ver nenhum resultado e estava deprimida, saí de lá arrasada. Fiz os exames solicitados e escutei na consulta de retorno algo como “nossa, sua tireoide parou de funcionar, isso explica todos os seus sintomas, você precisa repor o hormônio e tudo vai voltar ao normal”. Voltou mesmo. Por causa desse episódio, evito até hoje médicos homens. Minha experiência com as mulheres tem sido menos traumática (embora não seja, nem de longe, perfeita. Carecemos muito de profissionais com perspectiva de gênero, em todas as áreas). Nessa época, fiz uma dieta de um francês que ficou muito famoso, comprei o livro e segui à risca. Em um dos capítulos, ele dizia que deveríamos tomar sempre água gelada e usar pouca roupa, porque passar frio acelera o metabolismo, o que ajuda a perder peso. A minha versão de 26 anos achou aquilo muito estranho, mas comprou a ideia. A mulher que sou atualmente acha isso ridículo, cruel e completamente absurdo. Escrevo aqui quentinha no meu roupão azul. Não há nada no mundo que me faça abrir mão desse conforto tão básico.
Foi só aos 30 anos que comecei a realmente questionar crenças, padrões e buscar entender o quê funciona para mim, qual é a realidade do meu corpo, a tentar acomodar saúde, prazer e aceitação. A minha melhor e mais poderosa ferramenta nesse processo foi a terapia. No meu caso, nunca foi sobre comida. Sempre foi sobre ansiedade, compulsão, pressão estética, sobre a incapacidade de lidar com determinados sentimentos e traumas. Quando comecei a mexer nesse vespeiro emocional, a relação com a comida e com o meu corpo melhorou muito. Esse assunto é resolvido na minha vida? Não, com as gestações e os pós-parto ele ganhou uma nova dimensão (isso será assunto para um próximo texto). Mas posso dizer que melhorou muito. Nunca mais fiz dieta de restrição, nunca mais acreditei em solução milagrosa, nunca mais caí em papo de influencer, nunca mais vivi efeito sanfona. Não é algo de que eu possa descuidar, sempre mantenho algum nível de atenção, até por que é um tema que parece estar soldado na mente das mulheres. É muito difícil não se comparar, é muito difícil olhar no espelho e não caçar defeito. Essa é mais uma das muitas ciladas do patriarcado para te deixar mais fraca, mais ocupada, mais pobre e com uma atitude competitiva em relação a outras mulheres, o que nos deixa mais solitárias. A gente pode até cair nela, mas tem que cair com consciência. É isso, junto com uma rede de apoio de mulheres na mesma busca, que pode melhorar a nossa vida.